No Sul de Minas, empreendedor pioneiro enlatava vinhos já no início da década de 1970
Por: DR. Júlio Anselmo de Souza Neto
Um belo dia, navegando na Internet, saltaram-me à telado notebook vários pop-ups (aquelas malditas janelinhas que não pedimos para aparecer!). Dois deles eram de propagandas de vinhos em lata. Imediatamente, me lembrei dos vinhos em lata da marca “Vinhas de Israel” que bebi em minha juventude em Poços de Caldas, MG. Nos anos 1970, eles eram a novidade “prafrentex” (hoje seria “descolada”) e faziam sucesso, sobretudo, nas lojas de produtos para turistas. Para desapontamento dos poços-caldenses, não eram produzidos pela Marcassa, a única vinícola da nossa cidade, mas sim pela Israel e Silva, vinícola da vizinha cidade de Santa Rita de Caldas, cuja centenária história merece ser contada.
Naquela pequenina cidade sul-mineira, em 1910, Israel Theodoro do Nascimento e Silva, mais conhecido como Sr. Israel Silva, exercia as profissões de barbeiro e folheiro, isto é, um artesão que fazia canecas, latas e outros utensílios com a “folha de Flandres”, material laminado feito de aço de baixo teor de carbono e estanhado, muito resistente à corrosão. A atividade de folheiro foi fundamental para alavancar o seu futuro negócio que nasceu em 1918, a partir da comercialização de compotas de pêssegos feitos por sua esposa Francisca Martins, a Dona Chiquinha. Com o sucesso das vendas, a produção das compotas foi transferida para uma casa antiga no centro da cidade (que até hoje é sede da empresa) e a nova fábrica foi batizada de Doces Gigante. A origem do nome: os pêssegos usados nas compotas eram plantados pelo próprio Israel e, como eram muito grandes, quando ele os colhia sempre dizia: “Chiquinha, olha que pêssego gigante!”
Em 1919, Israel resolveu enlatar as compotas para que se conservassem por mais tempo e registrou a empresa sob a razão social Agroindustrial Israel e Silva. Em fevereiro deste ano a empresa de Israel completou 102 anos!
A marca Doces Gigante tornou-se conhecida em todo o país e na década de 1980 já exportava para a Argentina e os Estados Unidos.
Ao longo dos anos, agregou ao seu portfólio produtos (compotas, doces e geleias) de outras frutas, que existem até hoje (o meu predileto é o “Figo Málaga” caramelado!). Apesar do sucesso dos doces, o empreendedor Israel não se acomodou, e decidiu produzir vinho.
Em 1943, com a ajuda do filho José de Alencar e Silva (de apenas seis anos), plantou videiras na sua chácara, a Quinta Santa Rita e, após o crescimento das videiras, criou a vinícola Vinhas de Israel que, de 1928 a 1971, produziu vinhos com a marca Santa Rita, envasados em garrafas e garrafões. Eram vinhos de mesa feitos com três uvas americanas da espécie Vitis labrusca: a Niagara Branca (híbrida resultante do cruzamento das uvas Concord x Cassady, realizado em 1868 no Condado de Niagara, Nova York, EUA), a Niagara Rosada (mutação da Niagara branca, descoberta no Brasil por Antonio Carbonari, em 1933, em Louveira, SP) e a tinta Ives Noir ou Folha de Figo ou Bordô ou Terci (híbrida desenvolvida por Henry Ives em 1840, no Estado de Ohio, EUA).
O 1° vinho em lata do Brasil
Após a morte de Israel em 1958, José de Alencar assumiu a direção da empresa e, seguindo o empreendedorismo do pai, decidiu comercializar vinhos em lata. Mas o vinho corroía o verniz que revestia o interior da lata. Para isso, ele foi à França em 1970 em busca da tecnologia para a fabricação das latas que conservassem adequadamente o vinho –e de lá trouxe a solução: as latas teriam que ser de aço e revestidas internamente com um verniz especial. José Israel passou o protocolo de fabricação à Metalúrgica Mococa (empresa paulista da cidade homônima, existente até hoje), que se tornou a sua fornecedora de latas.
Assim, em 1971 começaram a ser produzidos os vinhos em lata da marca Vinhas de Israel que, portanto, foram os primeiros vinhos em lata do Brasil! Eram vinhos de mesa brancos, rosés e tintos, feitos com as mesmas uvas usadas nos vinhos de garrafa e garrafões e, também com a uva vinífera Cabernet Sauvignon, comprada na Serra Gaúcha. Eles fizeram sucesso e, com o aumento das vendas, a Metalúrgica Mococa, então uma empresa pequena, não conseguiu atender à demanda e passou a dividir a produção com as metalúrgicas Matarazzo, Prada e Rheen.
No mesmo ano de 1971, a cervejaria Skol lançou a primeira cerveja em lata do Brasil, feita em “folha de Flandres” e em 1989 lançou a primeira cerveja em lata de alumínio do país.
A partir daí, as metalúrgicas, que antes produziam latas de “Flandres”, direcionaram sua produção para latas de alumínio e, além disso, na época não havia tecnologia para envasar o vinho em alumínio. Assim, a produção dos vinhos em lata Vinhas de Israel cessou em 1990.
José de Alencar faleceu aos 66 anos em 2003, mas a ideia de voltar a produzir vinhos em lata continua sendo acalentada por seus sucessores.
Segundo sua filha Maria Salete, atual gestora da empresa, seus sobrinhos Gustavo e Tadeu, que trabalham com ela na empresa, planejam reativar a produção dos vinhos em lata, pois hoje há tecnologia eficiente para fazê-lo.
Nossos votos de sucesso à família nessa empreitada.
(OBS: Agradeço à Maria Salete e Silva Sauda pelas informações sobre a Agroindustrial Israel e Silva).
Mercado em expansão
Novas tecnologias permitiram o sucesso da embalagem metálica
Pouca gente sabe que o vinho enlatado existe desde 1917, embora não fosse o verdadeiro “vinho em lata”, pelo menos tal como o conhecemos hoje. Eram galões de lata contendo vinho que o exército francês enviava com as rações de suas tropas durante a Primeira Guerra Mundial. Na década de 1930, popularizou-se o processo de envasamento de alimentos e bebidas em latas de aço, surgindo na Califórnia, EUA, dois vinhos em lata: o Acampa Muscatel e o Vin-Tin-Age Muscatel.
No entanto, a embalagem não vingou por dois motivos: a baixa qualidade dos vinhos utilizados e a ação dos ácidos e do álcool presentes no vinho, que corroíam a camada protetora do revestimento interno da lata. Resultado: o vinho entrava em contato com o aço, interagia com ele e, quando não se deteriorava, sofria alterações marcantes.
Nos EUA, a primeira grande ascensão dos vinhos em lata ocorreu no final da década de 1970. Para se ter uma ideia, em três anos, a produção da vinícola californiana Taylor cresceu de zero para 8 milhões de latas vendidas!
No entanto, mesmo com a resolução do problema do revestimento interno das latas, os consumidores continuavam reclamando dos sabores e aromas (metálicos e outros, ainda mais estranhos). Com isso, o mercado de vinhos em lata praticamente se extinguiu.
No Brasil, a vinícola pioneira, em 1971, e única (até onde eu sei), até 1990, foi a mineira Vinhas de Israel (veja nas páginas anteriores).
Nos EUA, durante as décadas de 1980 a 1990, houve tentativas de envasar vinhos em latas de alumínio (inventadas em 1959), pois eram menos corrosivas e sem ferrugem. No entanto, além dos consumidores preferirem as garrafas de vidro, a maioria dos produtos utilizados continuava a ser de baixa qualidade e, por si só, instáveis.
Resultado: as latas de alumínio foram culpadas por estragá-los e o mercado praticamente acabou.
A partir dos anos 2000, o mercado de vinhos em lata retomou o crescimento, sobretudo na década de 2010.
Segundo pesquisa de 2018 realizada pelo Texas Wine Market Research Institute, em três anos o mercado americano de vinhos em lata passou de US$ 6,4 milhões em 2015, para US$ 14,5 milhões em 2016 e para US$ 22,3 milhões em 2017.
Ou seja, naquele último ano houve um crescimento de 54%! (Obs: nesses três anos, o mercado de vinhos cresceu em média 4% ao ano).
Resumindo, os vinhos em lata estão bombando e, tudo indica que desta vez eles vieram para ficar!
Enlatados importados
Mercado dos vinhos em lata
Mas, afinal, existem muitas opções de vinhos em lata no Brasil? Em pesquisas feitas recentemente na Internet encontrei doze marcas no mercado brasileiro.
Uma delas, importada, me chamou a atenção: a australiana Barokes, pois ela se apresenta, em seu site, como “inventora do Vinsafe, sistema patenteado de embalagem de vinho em lata que garante estabilidade e longevidade”.
A ideia de produzir vinho de qualidade premium enlatado foi de Greg Stokes em 1996, após a queda acidental de uma garrafa de vinho numa banheira Jacuzzi. A invenção, desenvolvida por ele e Steve Barics, levou duas décadas de pesquisa e desenvolvimento. Segundo eles, os vinhos, lançados em 2002, “são os únicos vinhos em lata com qualidade premium no mundo”. As uvas provêm de várias regiões da Austrália e são cultivadas de acordo com especificações da Barokes e os vinhos feitos mediante processo patenteado pela Vinsafe e gerenciado pelo Master of Wine australiano Peter Scudamore-Smith.
Segundo a empresa, seus vinhos “são cuidadosamente amadurecidos para atingirem seu pico (ponto máximo de qualidade) e, depois de enlatados pelo sistema Vinsafe, mantêm-se no apogeu até o momento do consumo, com o mínimo de conservantes necessários... “Enlatamos vários vinhos australianos premiados... os únicos vinhos em lata no mundo com esse nível de sucesso!”
Matéria do site Wine Business de 21/11/2019 confirma que “os vinhos da Barokes foram premiados com mais de 400 medalhas em competições internacionais, enfrentando vinhos engarrafados, alguns deles muito caros!... A empresa também inscreve vinhos velhos em competições enológicas para avaliar o desempenho deles, e 239 medalhas foram concedidas a vinhos com 15 anos de vida na lata”, afirma o site.
Fiquei doido para provar os vinhos premium em lata da Barokes! Conclui-se, portanto, que os vinhos que a companhia australiana consegue fazer com o seu sistema Vinsafe são uma exceção, pois em tudo que já li, escutei e provei, os vinhos em lata ou são insossos ou ficam muito a desejar.
Coincidência oportuna
Por inusitada coincidência, na mesma semana da minha pesquisa na Internet, fui a um supermercado e lá havia degustação promocional de cinco vinhos em lata brasileiros, de uma mesma marca.
Provei-os todos, já que depois, dos Vinhas de Israel dos anos 1970, eu nunca mais havia bebido nenhum vinho em lata. Os cinco vinhos eram feitos com uvas Vitis vinifera (usadas em vinhos finos), em corte (mistura) ou isoladamente: Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot, Moscato, Pinot Noir e Syrah. Segundo os rótulos, três deles eram “tranquilos” (sem gás) e dois “frisantes” (com um pouco de gás); quatroeram secos e um era meio-seco. Meu veredito sobre eles? Infelizmente, todos fracos, inexpressivos e sem caráter e todos, mesmo os declarados secos, com açúcar residual perceptível (ligeiramente meio-doces). O frisante tinha bolhas agressivas, pois é gaseificado, isto é, não tem o gás natural da fermentação e recebe adição de gás artificial, o que o torna mais semelhante a um refrigerante.
Não vou dizer a marca dos vinhos que provei, porque penso que cada consumidor tem gosto próprio e provavelmente aqueles vinhos agradarão os não iniciados no vinho e podem lhes abrir as portas do consumo de vinhos finos, como aconteceu, nos anos 1970 e 1980, com o vinho alemão Liebfraumilch, fraquinho e docinho e... muito comprado!
A seguir, apresento os vinhos em lata que encontrei no mercado brasileiro e espero provar todos eles para ter uma visão mais abrangente e precisa a respeito desta categoria de vinhos.
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