Descubra esse método ancestral ainda cultivado no Alentejo português –e onde comprar e degustar esses vinhos raros no Brasil
POR DR. JÚLIO ANSELMO DE SOUZA NETO
O “vinho de talha” é um tipo muito peculiar de vinho feito na região do Alentejo, em Portugal. O meu primeiro contato com ele aconteceu na década de 1990, através do vinho José de Sousa Mayor, produzido por Domingos Soares Franco, enólogo-proprietário da empresa José Maria da Fonseca em sua primeira propriedade fora da Península de Setúbal, a antiga (e então desativada) Adega José de Sousa Rosado Fernandes, existente desde 1878! Em 1986, a J. M. Fonseca a adquiriu, reativou e rebatizou simplesmente como Adega José de Sousa. Desde então, tenho bebido outros “vinhos de talha” e, recentemente, após degustar mais um exemplar, resolvi estudá-los um pouco mais.
O nome “vinho de talha” se deve ao fato de que o processo de fermentação deste tipo de vinho ocorre em talha de barro que é a descendente mais volumosa da ânfora, recipiente utilizado pelos romanos há mais de dois mil anos para conservar e transportar líquidos. Aliás, o nome talha deriva do latim “tinalia” que significa vaso ou vasilha de dimensões grandes. Existem registros arqueológicos comprovando que os romanos vinificavam e guardavam os seus vinhos em potes e vasos semelhantes e iguais às talhas alentejanas que é feita de barro e/ou argila e pode variar em tamanho, forma e porosidade, dependendo do estilo do oleiro que a produz e da localidade onde é produzida. A sua técnica de produção tem passado por gerações quase sem alterações. Hoje, vinícolas modernas elaboram o “vinho de talha” utilizando técnicas e equipamentos diversos, mas sempre buscando não modificar a essência do processo tradicional.
Segundo registros do século 19, na elaboração do vinho de talha não se utilizava prensa, nem lagares, sendo a pisa (esmagamento da uva com os pés) feita, muitas vezes, no próprio chão da adega. A uva era descarregada por janelas grandes diretamente para o chão que era lajeado e “esconso” (inclinado), de forma que o mosto deslizava para uma cisterna ou talha enterrada que tinha o nome de “ladrão” ou “adorna”. Esta talha enterrada tinha também função de segurança, para impedir que se perdesseo vinho extravasado no caso de a talha arrebentar pela pressão gerada pela fermentação, fato que não ocorre tão raramente (hoje, o ladrão tem apenas esta função).
No método tradicional, as uvas que chegam à adega são esmagadas com ou sem engaço (a parte lenhosa do cacho) e levadas para as talhas. As adegas mais tradicionalistas utilizam o ladrão e o mosto nele acumulado é vertido para as talhas por meio de canecas ou baldes.
No processo de desengace (retirada do engaço), utiliza-se a “ripadeira” (ou “mesa de ripanço”) que é um tabuleiro (ou mesa) cujo fundo (ou tampo) é formado por ripas paralelas de madeira com espaços entre elas. Na ripadeira é feito o ripanço, operação que consiste em esfregar os cachos com as mãos sobre as ripas e pressioná-los fortemente,de modo que as cascas e o mosto escorram pelos espaços entre as ripas. Hoje, no entanto, a maioria das adegas utiliza desengaçadores elétricos.
Conforme a tradição de cada produtor e/ou localidade, a utilização do engaço na fermentação varia: desde o uso de nenhum engaço, até o uso da totalidade do engaço. Segundo os produtores que o utilizam, o engaço contribui para o maior arejamento das massas vínicas (cascas e bagos inteiros, no caso da pisa incompleta) e permite um efeito de filtração.
Atualmente, logo após o esmagamento das uvas, é adicionada ao mosto uma pequena porção de dióxido de enxofre ou anidrido sulfuroso para eliminar bactérias e leveduras mais frágeis e indesejáveis, permitindo que apenas as mais eficazes sobrevivam e assumam o processo fermentativo.
Durante a fermentação, as massas vínicas são revolvidas várias vezes (no mínimo duas) com um rodo de madeira, de modo a evitar que obstruam a boca da talha, o que a faria arrebentar.
Muitas adegas ficam a alguns metros abaixo do solo para que o ambiente durante a vinificação seja o mais fresco possível. Além disso, para abaixar a temperatura, a superfície externa da talha é molhada com água várias vezes ao dia ou é coberta com uma “serapilheira” (folhas e ramos em decomposição, misturados com terra) e/ou panos molhados.
Geralmente, a fermentação termina após 8 a 15 dias e, depois de algumas semanas, o chapéu (parte sólida dos cachos), que desceu para o fundo da talha, lá se deposita e realizará uma espécie de filtragem do vinho, no momento da trasfega (transferência para outro recipiente) ou da abertura da talha para consumo direto.
A seguir, ou se coloca uma torneira no orifício (antes tapado com um tampão de cortiça) que fica a 30 cm do fundo da talha, para servir o vinho diretamente, ou é feita a trasfega do vinho (operação que dura de um a dois dias) para outra talha, onde ficará durante o inverno até ser consumido ou engarrafado (geralmente antes de março). A retirada das massas vínicas que ficamna talha da fermentação é feita manualmente por um homem de pequena estatura que entra em seu interior. Todo o processo anteriormente descrito é o mesmo para vinhos tintos e brancos.
Pode-se, também, efetuar a mistura de uvas tintas e brancas na fermentação, obtendo-se um vinho rosado chamado de “petroleiro” por causa da sua cor. Após o vinho pronto, as talhas cheias são geralmente vedadas com tampas de madeira, barro ou mesmo com papel pardo, chamadas tampas sólidas. Alguns produtores artesanais mantêm a talha aberta e utilizam a tampa líquida, recurso de vedação que remonta à Antiguidade e que consiste em colocar sobre a superfície do vinho uma camada de azeite (cerca de um dedo de altura) que impedirá a entrada do ar.
Concluindo, é importante ressaltar que alguns produtores utilizam a talha apenas para fermentação e depois transferem o vinho, por bombeamento mecânico, para uma cuba de aço inox ou barrica de madeira, tal como acontece na elaboração de um vinho comum.
Na elaboração dos vinhos de talha utilizam-se cerca de 18 variedades de uvas, 11 tintas e 7 brancas. As tintas, em ordem decrescente de frequência, são: Aragonês ou Aragonez, Alicante Bouschet, Trincadeira, Grand Noir, Tinta Grossa, Moreto, Touriga Nacional, Syrah, Afroucheiro, Touriga Francesa e Castelão. As brancas, também em ordem decrescente de frequência, são: Antão Vaz, Diagalves, Manteúdo, Perrum, Roupeiro ou Códega ou Síria, Rabo de Ovelha e Alvarinho.
Fazem-se necessárias algumas observações sobre estas uvas. A Grand Noir de la Calmette (ou simplesmente Grand Noir) é resultante do cruzamento de Petit Bouschet e Aramon Noir, efetuado em 1855 pelo viticulturista francês Henri Bouschet, em sua vinha em Mauguio, no departamento de Hérault. A uva recebeu o nome da estação de melhoramento Domaine de la Calmette. A Alicante Bouschet ou Alicante é resultante do cruzamento, também efetuado por Henri Bouschet em 1866, entre a Grenache e a Petit Bouschet (esta última também resultante de cruzamentoentre a Teinturier du Cher e a Aramon Noir). As uvas Antão Vaz, Diagalves, Moreto, Perrum e Tinta Grossa são autóctones do Alentejo. As demais, com exceção da francesa Syrah, são portuguesas e encontradas em várias regiões do país.
Hoje, existem no Alentejo dez produtores de vinhos de talha que elaboram um total de 17 tintos e 8 brancos.
A seguir, a relação dos produtores, suas localizações, vinhos e importadores:
ADEGA DE BORBA
Borba, Distrito de Évora
Vinho de Talha Tinto
Importador: Adega Alentejana - São Paulo, SP.
CASA RELVAS
Évora
Art. Terra Amphora Tinto
Importador: Cantu - São Paulo, SP.
FITA PRETA VINHOS
Évora
Fita Preto Branco de Talha
Importador: Adega Alentejana - São Paulo, SP.
HERDADE DO ESPORÃO
Reguengos de Monsaraz, Distrito de Évora
Moreto Vinho de Talha Tinto, Vinho de Talha Vinhas
Velhas Tinto e Vinho de Talha Branco Roupeiro
Importador: Qualimpor - São Paulo, SP.
HERDADE DO ROCIM
Freguesia de Cuba, Vidigueira, Beja
Amphora Tinto e Amphora Branco
Importador: World Wine - São Paulo, SP.
JOSÉ DE SOUSA
Reguengos de Monsaraz, Distrito de Évora
J Tinto, José de Sousa Mayor Tinto, José de Sousa
Tinto, Puro Talha Branco, Montado Tinto e Branco
Importador: Decanter - Blumenau, SC.
PAULO LAUREANO
Vidigueira, Distrito de Beja
Tradições Antigas Vinho de Talha Tinto
Importador: Adega Alentejana - São Paulo, SP.
ROQUEVALE
Redondo, Distrito de Évora Tinto da Talha e Tinto da Talha Grande Escolha
Importador: Adega Alentejana - São Paulo, SP.
Outras 4 vinícolas não têm importador no Brasil:
A.C.V.
Freguesia de Vila de Frades, Vidigueira, Beja A.C.V. Escolha Tinto e A.C.V. Escolha Branco e D. Alice Escolha Branco.
ESPAÇO RURAL
Vidigueira, Distrito de Beja Bojador Tinto e Bojador Branco.
HONRADO
Freguesia de Vila de Frades, Vidigueira, Beja Talha Tinto, Talha Tinto Premium e Talha Branco.
VITIFRADES
Freguesia de Vila de Frades, Vidigueira, Beja Amphora Tinto.
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