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Vinho e gastronomia nas Gerais

A italiana Nella Cerino tem formação internacional avançada em gastronomia e alimentação, além de enologia e viticultura. Veja entrevista completa com a especialista, radicada em Minas Gerais


Por: Maria Edicy Moreira



A enogastrônoma italiana Nella erino, nascida na província de Salerno, na Campania, a poucos quilômetros do local em que, na década de 1950, o médico americano Ancel Keys estudou a dieta mediterrânea, que se tornou patrimônio cultural da humanidade na Unesco, começou sua vida profissional como enfermeira. Passou pelo jornalismo científico ligado à alimentação como prevenção de doenças e formou-se pela Universidade de Ciências Gastronômicas (Unisg), em Pollenzo, Piemonte, fundada em 2004 pelo movimento Slow Food.

Depois de formada foi conhecer a culinária e a vinicultura de países como Índia, Marrocos, Canadá e, por sugestão de uma amiga brasileira, finalmente chegou ao Brasil, para conhecer, mais precisamente a culinária mineira, na cidade de Tiradentes, onde encontrou o amor de sua vida, o sommelier Renato Costa, presidente da ABS-Minas.

Hoje ela vive em Belo Horizonte, onde é diretora-executiva da ABS Minas (Associação Brasileira de Sommeliers Seção Minas Gerais), professora de enografia italiana na entidade.

Com toda essa bagagem, Nella se autodenomina enogastrônoma, uma profissional que fala de vinho, alimentação e slow food com muita propriedade. Também apresenta suas impressões sobre a indústria do vinho nacional, o mix com produtos importados, a forma como consumimos vinhos e a harmonização entre a bebida e as comidas tipicamente brasileiras como churrasco, feijoada, moquecas e acarajé.


VM - Como se define nos mundos do vinho e da gastronomia? NC - Eu me formei na Universidade de Ciências Gastronômicas (Unisg) em Pollenzo, fundada em 2004 pelo movimento internacional Slow Food. O objetivo desta universidade inovadora e especializada é treinar o gastrônomo, uma figura profissional que possui conhecimentos e habilidades gerais no setor agropecuário e trabalha direcionando a produção, distribuição e consumo de alimentos para escolhas corretas e úteis, visando criar um futuro sustentável para o planeta. Hoje, o gastrônomo deve, portanto, atuar como intérprete cultural e ponte entre comunidades, criando conexões valiosas no mundo da comida. Na Itália, o vinho também é considerado alimento.

Portanto, é o gastrônomo quem harmoniza e combina aspectos científicos e humanísticos, a fim de promover da melhor maneira possível os produtos enogastronômicos e, em sua prática profissional, ele é capaz de coletar, interpretar e disseminar informações relacionadas ao setor enogastronômico, em particular em relação à qualidade e tipicidade de produtos agropecuários, também em relação às atividades turísticas e culturais do território.

Durante o ciclo de estudos, o enogastrônomo pode enriquecer sua trajetória de treinamento com um dos aspectos fundamentais do patrimônio enogastronômico italiano: o vinho, a cultura que sempre gerou e, além disso, o sistema econômico conectado. Então, pode me chamar enogastrônoma.



VM - A senhora começou profissionalmente como enfermeira, depois atuou como jornalista... Quando exatamente a enogastronomia entrou em sua vida como opção de trabalho?

NC - A enogastronomia entrou em minha vida exatamente quando eu alcancei o momento de maturidade profissional. Após muitos anos de tratamento de pacientes, comecei a refletir sobre como era possível prevenir o aparecimento da própria doença. Nosso bem-estar deriva fundamentalmente do que o corpo se alimenta, para ter uma vida saudável e, na medida do possível, livre de doenças, é necessário seguir um plano alimentar correto e saudável. Hoje, mais do que nunca políticos, sociólogos, psicólogos e antropólogos estão discutindo esse tópico e tentando dar respostas efetivas a toda a sociedade.

O problema alimentar afeta principalmente o mundo ocidental porque, ao longo dos anos, os alimentos se tornaram mais refinados, o horário de trabalho não permite que você coma com calma e corretamente, você cozinha cada vez menos e se contenta em consumir fast-food. Além disso, a vida sedentária não permite um bom metabolismo, prejudicando especialmente o coração e o sistema cardiovascular. Penso que esse caminho pensativo era mais natural para mim: nasci em uma pequena cidade na província de Salerno, a poucos quilômetros do local onde, na década de 1950, o médico americano Ancel Keys estudou a Dieta Mediterrânea, que se tornou um patrimônio cultural da humanidade na Unesco e porque não é um plano alimentar simples, baseado nos três pilares da Dieta Mediterrânea (vinho, pão e azeite de oliva), mas um elemento cultural real da nossa sociedade. De fato, as refeições diárias são compartilhadas e refletem peculiaridades regionais. A dieta também contribui para o desenvolvimento de atividades e ofícios tradicionais e pode trazer economia para todas as famílias: os alimentos não consumidos após uma refeição podem ser reutilizados de várias maneiras através de receitas de recuperação.

Ultimamente, especialmente na Itália, a culinária se tornou uma atração turística: existem muitos itinerários de comida e vinho que ligam a beleza natural de um território às suas tradições alimentares. Entendi que poderia dar minha contribuição para a divulgação de uma nova política alimentar. A vida humana é composta de alimentos que são transformados, então você deve ter cuidado para escolhê-los com cuidado.


VM – Durante sua formação na UNISG a senhora foi conhecer a culinária da Índia, Marrocos e Canada... Encontrou, nestes países, a exemplo da Itália, o vinho reconhecido como alimento?

NC - Durante meu curso de estudo, fiz visitas didáticas para conhecer e estudar a enogastronomia de diferentes países, e agora posso afirmar o seguinte:

Quem pensava que apenas o chá era a bebida dominante na Índia, tem de saber que no país a cultura do vinho também está se tornando cada vez mais difundida. Em diferentes áreas, a paisagem muda, cobrindo-se de vinhedos, nas grandes cidades também são criados clubes de vinho para mulheres e agora os produtores indianos buscam exportar. Se a proximidade do equador e as estações das monções não ajudam, no entanto, o solo argiloso e a altura de certas vinhas podem proporcionar colheitas de qualidade. Há dois anos, o ABS Minas, em colaboração com o Consulado Indiano no Brasil e a Câmara de Comércio Índia-Brasil (CCIB), organizou uma degustação muito interessante e

surpreend ente de vinhos produzidos pelo enólogo francês Michel Roland, que está fazendo investimentos na Índia. Então a Índia se torna uma terra enológica para se ficar de olho.

A produção de vinho no Marrocos remonta à época dos antigos romanos; as videiras eram cultivadas em torno da antiga cidade de Volubilis (em árabe chamada Walili), bem perto de Meknès, onde um excelente vinho era produzido; os latinos apreciaram e beberam em quantidade, conforme a tradição romana. Nos últimos séculos é que, graças também à colonização que ocorreu nas mãos dos franceses, a vitivinicultura foi reintroduzida e redescoberta no Marrocos; o vinho colonial foi produzido para a França, pelo menos até 1956: naquele ano, o Marrocos retornou a um país independente e o sultão marroquino Hassan II interrompeu a produção de vinho, por razões óbvias relacionadas à religião, exceto em alguns casos especiais. A partir de 1964, graças à sua vinícola Celliers de Meknès, Zniber foi responsável pelo crescimento da área vinícola marroquina por excelência, fazendo pleno uso das vinhas como Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah e Chardonnay. É curioso notar que esta última variedade de uva tem origens no Oriente Médio, de acordo com algumas fontes e não nos Balcãs, como outros acreditam. Em resumo, Marrocos é uma terra que produz vinhos interessantes, particulares e de alta qualidade, não apenas para fins de exportação, mas também para a crescente moda de consumo interno, especialmente entre os jovens: de fato, nas grandes cidades marroquinas, eles podem consumir bebidas alcoólicas, como vinho e cerveja, e há muita tolerância, apesar das restrições islâmicas. Portanto, o vinho marroquino não deve ser considerado um vinho exótico, mas sim uma redescoberta dos gostos do passado europeu.

No Canadá, a produção de uvas remonta a mais de 200 anos. Com técnicas de cultivo específicas, foi possível produzir vinhos com características valiosas porque são obtidos em condições climáticas mais frias; Icewine e Late Harvest são famosos. A produção interna inclui vinhos de preço médio- -baixo, cortados com produto importado e rotulados “Cellared in Canada”, juntamente com vinhos de preço médio-alto, exclusivamente de uvas nacionais, que cumprem os padrões VQners da Vintners Quality Alliance para a denominação, as indicações de origem e a safra.

A legislação alimentar é baseada em uma série de leis, que têm força de lei, e nos regulamentos associados, que contêm os detalhes dos requisitos. O padrão básico é a Lei de Alimentos e Medicamentos (FDA), com os respectivos regulamentos de Alimentos e Medicamentos (FDR), que contêm requisitos e padrões de rotulagem para muitas classes de alimentos, incluindo vinho.


VM - O que pensa em relação ao fato de o Brasil ainda não considerar oficialmente o vinho como um alimento?

NC - Considerar o vinho como alimento ainda surpreende as pessoas no Brasil. Essa surpresa é determinada, possivelmente, pelo fato de a maioria dos brasileiros ainda não ter o hábito de tomar vinho às refeições – exceto em algumas regiões específi cas como a Serra Gaúcha – e pela história recente do Brasil como produtor de vinhos em larga escala, que é pouco superior a cem anos. Nas nações europeias, em que o vinho consta da dieta alimentar de seus habitantes há milênios, as qualidades da bebida como alimento são reconhecidas culturalmente e aceitas pela população com naturalidade.


“O Brasil está tentando especializar cada área de produção com as vinhas e as técnicas mais adequadas à vocação de cada território”


VM - Qual é a importância de o vinho ser considerado alimento?

NC - É cientificamente comprovado que o vinho aporta, para o organismo humano uma série de substâncias que auxiliam e ajudam a sustentar o organismo, como vitaminas e minerais. Este é o embasamento para um projeto de lei a ser enviado ao Congresso Nacional para que a legislação brasileira reconheça o valor alimentício do vinho. Para que a legislação vitivinícola brasileira considere o vinho como alimento é necessário ver se ele encaixa nesta categoria. Portanto, inicialmente, deve-se definir vinho e alimento.

VM - O que pesou mais para sua permanência no Brasil?

NC - Uma amiga de Juiz de Fora (MG) fez questão que eu fi zesse uma visita didática a esse Estado (MG) que nem sabia da existência. Em Tiradentes me apresentaram meu marido como um dos mais importantes sommeliers do Brasil. Em termos enológicos foi uma verdadeira harmonização que nos levou a casar depois de três meses de namoro. O emparelhamento entre comida- -vinho é um casamento de amor no qual se baseia a personalidade do prato e a do vinho, valorizando-se mutuamente. As sensações causadas pela comida e as sugeridas pelo vinho devem se harmonizar sem que uma prevaleça sobre a outra: nenhum de seus elementos característicos: ácido, amargo, doce e salgado, gordo, picante, devem ser prevalentes para o paladar. Um elemento fundamental para harmonização é a estrutura do prato: uma preparação muito saborosa não pode ser acompanhada por um vinho leve, assim como um prato leve fica dominado por um vinho robusto. Para atingir o objetivo da harmonia, os emparelhamentos podem ser feitos por contraste ou semelhança. Isso é o equilíbrio que acontece entre um casal!


VM - O que pensa sobre os vinhos e a gastronomia brasileiros?

NC- Em relação a gastronomia, ainda estou conhecendo a tipicidade do país inteiro. A culinária mineira tem muitos pratos diferentes e, em alguns aspectos, assemelha-se à culinária italiana, porque faz uso de ingredientes simples e naturais. Dizem que Minas Gerais está para culinária do Brasil, assim como a França está para a gastronomia internacional. Na culinária mineira são mantidos e preservados os preparos dos pratos valorizando as técnicas artesanais e os saberes regionais. Percebe-se, também, que a alimentação exerce um forte traço de coesão destas práticas, tanto na organização social quanto nas relações sociais de famílias e de grupos.

Segundo dados da OIV (Organização Internacional do Vinho), o Brasil está entre os maiores produtores de vinho do mundo. As expectativas para o mercado brasileiro de vinhos estão crescendo. Bares de vinho e varejistas comercializam cada vez mais garrafas nacionais. E o país vê uma evolução dos métodos de produção. Nos últimos 15 anos, o Brasil fez grandes progressos em relação à qualidade e identidade de seus vinhos. O país está tentando especializar cada área de produção com as vinhas mais adequadas e as técnicas mais adequadas à vocação de cada território.

A introdução da técnica dupla poda levou ao desenvolvimento da viticultura em Minas Gerais e São Paulo. Gostaria de sublinhar que ainda há muito trabalho a ser feito, apesar de já terem sido obtidos importantes resultados enológicos e reconhecimentos internacionais, porque esses avanços nem sempre são acompanhados pelo respeito que a natureza exige desde que se recorra a compostos químicos que são muito prejudiciais ao solo, para o meio ambiente, produtor e consumidor.

Outro desafio no setor também será diminuir a tributação do vinho, que é muito alta para os produtos nacionais. O vinho brasileiro é considerado um item de luxo e ainda é necessário disseminar esse mesmo cenário e visão dentro do território nacional com a implementação de uma cultura de consumo de vinho; não como bebida alcoólica, mas como suplemento alimentar, que traz enormes benefícios à saúde.




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