Nem um culto místico e afetado, nem uma beberagem alcoólica para empurrar a comida. Apenas o prazer de um bom vinho
POR IRINEU GUARNIER FILHO
A compreensível rejeição aos excessos dos enochatos – esnobes que transformam o simples ato de beber uma taça de vinho num ritual esotérico– resultou no surgimento de um outro tipo de chato: o enopopulista.
Se os pedantes “sacerdotes” do culto místico a Baco complicam ao máximo a degustação da bebida, os “desmistificadores” mais exaltados da enocultura caem no extremo oposto – querem “simplificar” um produto nobre da agricultura a ponto de convertê-lo numa commodity insossa.
Vinho branco “estupidamente gelado”. Adoçado com stévia. Misturado com Coca-Cola. Vinho branco quente ou tinto gelado. Harmonizado com cachorro-quente ou churros. Late harvest com feijoada ou fortificado com peixe. Vinho servido em copos plásticos descartáveis ou em xícara... Pode isso? Claro que pode. Tudo é permitido em matéria de gosto. Regrinhas básicas –desenvolvidas em séculos de experimentação– podem ser desprezadas. Mas convenhamos: até que ponto esse vale-tudo populista beneficia a milenar cultura do vinho?
Olhar, cheirar, rolar o vinho pela boca, senti-lo e procurar descrever suas cores, aromas e sabores comparando-os a frutos ou flores é algum tipo insuportável de afetação nouveau-riche? Bem, quem preferir pode beber seu vinho de um gole só, até mesmo no gargalo da garrafa, solitariamente, sem nenhum comentário. Por que não? Mas qual a graça?
Tire do vinho a literatura, o encanto das palavras que o descrevem, a história das famílias que o elaboram, a figura do vinhateiro por trás do rótulo, as paisagens onde brotam as vinhas, o prazer de comparar safras e terroirs e teremos apenas uma beberagem vulgar para entorpecer os sentidos.
Ora, o vinho é bem mais do que uma simples bebida alcóolica. O vinho é uma obra de arte da civilização. Uma extensão da cultura do homem. Acompanha a árdua caminhada da humanidade sobre a Terra há pelo menos sete mil anos. É associado às artes, à religião, à saúde e à alegria do convívio. Merece, portanto, ser apreciado com alguma cerimônia –não com aquela devoção presunçosa dos enochatos, mas com carinho e respeito. Na temperatura certa, devagar, em boa companhia, com comida adequada, numa boa taça.
“Descomplicá-lo”, “desconstruí-lo”, “popularizá-lo” demagogicamente; nada disso vai tornar o vinho mais apreciado ou consumido pelas “massas”. Pode, isso sim, afastar do vinho aqueles que gostariam de ser seduzidos pelos seus mistérios e de explorar sensorial e intelectualmente a sua complexidade. Como diz um amigo, não é necessário “tirar a gravata do vinho” –basta afrouxar o nó!
Em outras palavras, nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem enochatice, nem enopopulismo. Parafraseando Aristóteles, também no vinho “a virtude está no meio”.
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