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  • Vinho Magazine

Embriaguez sem álcool

Uma rara síndrome pode gerar álcool no organismo, sem a ingestão prévia de qualquer bebida alcoólica

Por: Dr. Jairo Monson de Souza Filho


Fiscalização com bafômetro pode acusar excesso de álcool no sangue, sem que o motorista tenha bebido

Existe uma situação clínica rara, na qual algumas pessoas podem ter elevados níveis de álcool no sangue sem que tenham ingerido qualquer bebida alcoólica. É a Síndrome da Fermentação Intestinal.

No início de 2016 a CNN noticiou o caso de uma mulher do norte do estado de Nova York, autuada pela polícia por dirigir sob a influência do álcool, e ela negava o consumo de bebidas alcoólicas. (http://edition.cnn.com/2015/12/31/ health/auto-brewery-syndrome-dui- -womans-body-brews-own-alcohol/). Esse incidente teve uma grande repercussão na mídia e no meio científico.

A tal senhora, após fazer compras, dirigia-se para casa. Pouco antes de chegar à sua residência, o pneu do carro furou. Ela optou por não trocar o pneu e seguir até à sua moradia. Outro motorista, percebendo a dificuldade da mulher em conduzir o veículo, acionou a polícia, que, diante de sinais clínicos de embriaguez, a autuou.

A senhora negava o consumo e a ingestão de bebidas com álcool e portanto pediu para fazer o teste do bafômetro, que acusou uma quantia de álcool no sangue quatro vezes maior que o limite legal para conduzir, que no Estado de Nova Iorque é de 0,08 mg de álcool por litro de sangue. A polícia, diante de níveis tão altos, além de autuá-la, a conduziu para o hospital para tratamento de intoxicação.

Pouco antes do natal de 2015, o juiz da pequena cidade de Hamburg, ao norte de Nova York, rejeitou a acusação de direção sob a influência do álcool, aceitando um atestado médico de que a senhora era portadora da Síndrome da Fermentação Intestinal.

Outro caso emblemático é o de um texano, publicado em 2013 no International Journal of Clinical Medicine. Na época, este senhor de 61 anos apresentava sinais constantes de embriaguez há pelo menos 5 anos. Em novembro de 2009, ele deu entrada num serviço de emergências médicas com sinais de intoxicação por álcool. O exame confirmou 371 mg de álcool por litro de sangue. Ele foi então internado para tratamento de intoxicação alcoólica grave. Como onegava peremptoriamente o consumo de bebidas de álcool, foi considerado pela equipe do hospital como um “closet drinker” (bebedor no armário). A sua esposa, enfermeira, também desconfiada, comprou um bafômetro e passou a realizar exames constantes. Foi ela quem observou que os níveis de alcoolemia pareciam ser mais altos quando a ingesta de carboidratos pelo marido era maior.

Em 2010 ele foi internado em isolamento, com monitoramento constante para estudo gastroenterológico completo. A cultura de suas fezes mostrou a presença de um fungo chamado Saccharomyces cerevisiae. Esta levedura é a mesma que faz a fermentação dos açúcares da uva, transformando-os em álcool e também é a reponsável pela fermentação da cerveja. Após uma ingesta rica em carboidratos, o senhor apresentou 120 mg de álcool por litro de sangue. Com isso firmou-se o diagnóstico de Síndrome da Fermentação Intestinal.

O Journal of Pediatric Gastroenterology & Nutrition, em 2001, trouxe o relato de um caso ainda mais dramático. Uma menina de 13 anos de idade apresentava constantemente alcoolemia entre 250 e 350 mg de álcool por litro de sangue. Após ampla investigação e avaliação psiquiátrica, teve indicação de internação em uma clínica para reabilitação de alcoólatras. O pai, que é médico, comprou um bafômetro e começou a monitorar os resultados da menina. Foi ele quem chamou a atenção da equipe que a tratava para o fato de que ela apresentava níveis mais elevados de álcool no exame quando ingeria alimentos ricos em carboidratos e sucos com muita frutose. Foi submetida a novos exames e a cultura de aspirados do conteúdo intestinal mostrou o crescimento dos fungos Candida glabrata e Sacchromyces cerevisiae. Com isso foi possível estabelecer um tratamento adequado e livrar a menina de um suplício.

Felizmente a Síndrome da Fermentação Intestinal é rara. Ela se deve a um crescimento excessivo de fungos (leveduras) no trato digestório, que fermentam os açúcares, transformando-os em álcool. Foram relacionados à esta síndrome o Sacchromyces cerevisiae e várias espécies de Candida (albicans, krusei e glabrata). Portadores desta doença parecem tolerar níveis mais altos de álcool no sangue, algo como 400 mg por litro, o que levaria algumas pessoas ao coma e até à morte.

O primeiro relato desta moléstia é de 1948. Em 1972, Iwata apresentou 12 casos documentados no Japão e mais casos esporádicos têm sido relatados na literatura científica. O tratamento com antifúngicos e dieta pobre em carboidratos tem se mostrado eficiente no combate deste triste mal.

O portador desta moléstia, além de sofrer danos orgânicos, também costuma ter problemas pessoais, familiares, sociais e trabalhistas, pois está sujeito a dificuldades nos relacionamentos, ser estigmatizado, prejudicado no trabalho e até a perder emprego, CNH, ser multado e até mesmo encarcerado.

A Síndrome da Fermentação Intestinal é uma doença rara e curiosa, mas tem consequências graves para o portador e não deve ser tratada apenas de forma midiática.

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