Carlos Ernesto Cabral de Mello é certamente um dos mais importantes nomes do vinho no Brasil, nação que parece incapaz de cultuar seus heróis e seus próceres.
Cabral é um marco –o mundo do vinho entre nós é divido entre aC e dC, antes e depois de Cabral. É o maior difusor do conhecimento vinícola, agregador, sempre disposto a contribuir generosamente para o crescimento do setor, no mais das vezes sem pedir nada em troca. É difícil escrever sobre um homem tão culto, articulado e sincero. Pessoa humana da maior estatura. Respeitado e amado, grande sujeito.
Fundou a primeira e durante um bom tempo a maior confraria de enófilos do Brasil, a Sbav, Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho, escreveu livros, colaborou em revistas e outras mídias e formou milhares de enófilos e atendentes de vinho. Fizemos aqui um pequeno bate-papo com ele.
Como, quando e porque o senhor se envolveu com o mundo do vinho?
Foi em Setembro de 1969, porque ganhei uma garrafa de Vinho do Porto Dom José de meu futuro sogro, Heinz Godau, daí despertou o interesse e uma paixão que dura até hoje!
Conte um pouco sobre a SBAV dos inícios, quando foi a 1ª confraria de grande porte independente do Brasil...
Sentia muita falta de ter com falar e junto degustar um vinho. Até o final da década de 70 do século passado não havia nenhum livro sobre vinho escrito em português disponível no -Brasil. Lendo nos livros que importei da Europa sobre Confrarias bateu-me a ideia de fazer uma Confraria no Brasil. No ano de 1980, durante a UD-Feira de Utilidades Domésticas que se realizava no Parque Anhembi, havia quatro estandes de vinícolas, sendo que o Almadén apresentava a maquete do que estavam fazendo em Santana do Livramento. Lá estavam o Château Lacave, da Família Carrau, a Cooperativa Aurora também estava por lá, e a Forestier. No dia de domingo, durante a visita a feira, pedi a Leda (Godau Mello, esposa) que fosse visitar o resto da feira, pois eu ficaria por entre esses estandes de vinho. Ali busquei falar com as pessoas que mais se interessavam por vinhos o que elas achavam de formar uma Confraria para nos encontrarmos. Foi assim que conheci o Amarante (José Osvaldo Albano do Amarante, engenheiro químico, autor e consultor de vinhos), o conde Giuseppe Filangieri e alguns de seus amigos; o Rodrigo Castanheira também. Peguei os telefones de todos e fui durante os meses de maio e junho fazendo contatos.
Na rua em que eu morava no Bairro do Imirim residia o Dr. Tércio Garcia de Magalhães, que gostava de vinhos e que logo deu-me apoio jurídico para formarmos uma confraria e redigir seu respectivo estatuto.
Chamei algumas pessoas que conhecia, como o José Luis Souza, Gerente de Alimentos e Bebidas do Brashilton. O conde Filangieri arregimentou 14 compatriotas, e assim marcamos a data da fundação da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho para o dia 11 de julho de 1980, no restaurante Chez Bernard, na cidade de Embu das Artes –este restaurante pertencia ao conde Filangieri.
Tudo formalizado, consegui os vinhos para essa noite marcante somente com a Almadén, na época comandada pelo Sr. Jerry Pepino, e acredite, os vinhos servidos foram só californianos, e um Johannesberg Riesling o que mais se destacou!
Nessa reunião, fui eleito presidente, o conde Filangieri vicepresidente, o Rodrigo Castanheira secretário geral, com o apoio de Étore José Mascela. Depois partimos para informar a vinícolas e importadores que havia uma confraria de apreciadores de vinhos no Brasil! Nada foi fácil, tivemos uma grande ajuda do amigo recém chegado Renato Frascino, que organizou a primeira viagem oficial da SBAV à Serra Gaúcha. Só essa visita da para ser relatada em um livro!
À frente do Pão da Açúcar há tantos anos, quantos atendentes o senhor imagina ter treinado para dar assistência ao consumidor na hora da compra do vinho?
Até o final de 2019 foram 525 atendentes formados. Iniciamos a formação deles em setembro de 2000. Foi uma verdadeira revolução no mercado de varejo de vinhos. Foi tão boa a ideia da Ana Maria Diniz, filha do Abílio Diniz que passados dois anos todos os concorrentes do Pão de Açúcar criaram também essa posição. Somente com dois atendentes de vinhos em dois anos, conseguimos vender dois milhões a mais de garrafas. Assim chegamos a ter ativos 187 atendentes de vinhos por todo o Brasil.
O que mais importa para o consumidor na hora da compra, o preço? Região? Indicação? Conselhos de amigos? Experimentar?
Sempre os conselhos, porque como a maioria não sabe muito sobre vinhos, procura informações para errar menos, aí o atendente tem diversas abordagens para falar sobre o tema, e o preço, fator determinante na hora da compra, é sempre tratado por último. No Pão de Açúcar o cliente leva a garrafa de vinho e sua história junto, e mais o testemunho do atendente, que na sua maioria já provou o vinho indicado.
O senhor tem idéia de quanto representa percentualmente o setor de vinhos no faturamento do grupo PGA.?
Nunca levantei essa informação, mas posso afirmar que o vinho é tratado com deferência, pois é muito melhor ser reconhecido como o maior vendedor de vinhos do Brasil do que como o maior vendedor de sabão em pó!
Nós sabemos que o senhor é o embaixador do Vinho do Porto no Brasil. Como é aceitação desse estilo de vinho pelos brasileiros – e ao longo do tempo?
Já foi até indispensável, pelo final do século 19 e inicio do século 20. O que atrapalha um maior consumo de Vinho do Porto no Brasil é a cerimonial importância que dão ao seu consumo. Ao invés de ir a mesa como qualquer outro vinho normal, o momento Porto é tratado com muitas regras, coisa que os brasileiros não são de aceitar muito! Mas um fato é irreversível: quando conseguimos ensinar alguém a desfrutar do Vinho do Porto, ele nunca desiste desse grande e maravilhoso vinho, nenhum outro tem mais história que ele!
Fazendo uma pequena retrospectiva do mundo do vinho no Brasil, o que melhorou e o que precisa ainda ser melhorado? O que a sua bola de cristal nos indica como tendência para o futuro?
O vinho brasileiro melhora a cada dia, o que falta é uma certa agressividade dos produtores, que se apequenam diante da cerveja e não investem em propaganda, desejam sempre que a mesma seja subsidiada. O vinho no Brasil deve ser dado a beber, ou seja deve ser provado, só assim conseguiremos formar uma base sólida de consumidores, não só os casuais, que gostam mais de exibir rótulos do que tomar uma taça diariamente como deveriam fazer. O vinho não pode ser tratado como cartão de visita de cultura e ostentação, trata-se de uma bebida normal, que até faz bem a saúde, o que é provado cientificamente.
A modéstia para divulgar o consumo deve partir dos produtores e importadores. Nunca como objeto de conquista. Por exemplo, 70% dos vinhos consumidos no Brasil não são de viníferas, são adocicados… Ora, se é isso que essa grande parte da população gosta, essa gente não pode ser abandonada, ações devem também serem voltadas a eles, pois gosto na área de vinho é algo que evolui com o tempo. O tomador regular de vinhos doces de hoje pode muito bem ser um grande consumidor de muitos outros vinhos mais especiais: não é dada a devida atenção ao consumidor de vinhos baratos!
Se o senhor tivesse a oportunidade de voltar atrás, entraria de novo nesse ramo de atividade?
Seguramente! Agradeço sempre ao vinho, pois completou a educação que recebi de meus pais, que eram europeus e não estudaram, mas tinham princípios que hoje são considerados fora de moda, como honestidade, por exemplo. O vinho fez-me conhecer o mundo, e a ele dedico toda uma vida, só aprendo a cada dia com esse precioso líquido.
Que conselhos o sr. daria para quem quer começar a apreciar vinho apenas como diletante? E para aqueles que pretendem trabalhar com o vinho, seja no comércio ou no serviço (sommelierie etc.)
Prove o máximo que puder por um certo tempo, separe depois aquele estilo que mais lhe agradou e então mergulhe de cabeça, seja um mestre no assunto, não para exibir aos outros, mas para homenagear o vinho que só lhe fará bem a alma.
Aos novatos nesse ramo de comércio é bom lembrar que toda atividade mercantil deve dar lucro, mas o vinho exige muito respeito, afinal não nasce da vontade individual de quem o fez, mas sim foi a natureza que nos deu aquelas uvas que se transformaram em uma obra de arte!!!
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