Na França, pesquisas buscam uvas híbridas mais robustas e prolíficas, mas com as características degustativas de variedades viníferas
POR DR. JÚLIO ANSELMO DE SOUZA NETO
Na mesma linha temática da minha coluna anterior (As uvas proibidas na França), hoje falo sobre as Uvas do Futuro, a partir do interessante artigo “Voyage au coeur du vignoble de demain” de Karyne Duplessis Piché, publicado em 2019 no jornal digital canadense La Presse (https://www.lapresse.ca).
Segundo o artigo, uma equipe de pesquisadores do Centro de Pesquisa Pech-Rouge em Gruissan, perto de Narbonne, no sul da França, trabalha há cerca de 30 anos para criar castas resistentes às principais doenças da videira, que poderão ajudar a eliminar o uso de produtos químicos e diminuir o impacto das mudanças climáticas.
No vinhedo experimental de Gruissan não há uvas das variedades usuais desta região do Languedoc, como a Roussanne, a Bourboulenc ou a Grenache, mas sim as uvas 3180-16-8-n e 3160-12-3-n que, segundo o pesquisador Hernan Ojeda, são extraordinárias e não são submetidas a nenhum tratamento, nem mesmo com cobre*.
(*Na verdade trata-se do sulfato de cobre, usado na chamada “calda bordalesa”, mistura de sulfato de cobre, cal virgem e água descoberta pelo botânico Pierre Marie Alexis Millardet no século XIX, na região de Bordeaux, França. Ela atua como fungicida e antiparasitária em diversos tipos de plantações e, particularmente no caso das videiras, é utilizada no combate ao míldio.)
Essas castas de nomes estranhos são fruto do trabalho desenvolvido há 30 anos pelo pesquisador Alain Bouquet, considerado o pai das castas resistentes na França. Ele pretendia desenvolver videiras capazes de se defender das principais doenças, nomeadamente o oídio e o míldio, e eliminar o uso de produtos químicos. Um grande desafio, pois ainda hoje, 20% dos fungicidas usados na França são aplicados em vinhedos que, no entanto, representam apenas 4% das áreas cultivadas. Na década de 1970, ele encontrou uma solução no sudeste dos Estados Unidos, onde descobriu videiras da espécie Muscadinia rotundifolia, variedade selvagem e resistente a todas as doenças, mas cujas uvas são inadequadas para a elaboração de bons vinhos. Durante anos, Bouquet realizou cruzamentos desta espécie com as variedades da espécie Vitis vinífera existentes na França e, ano após ano, foi mantendo apenas as plantas mais resistentes a doenças e que originavam vinho de melhor qualidade.
Assim, a nova uva 3180-16-8-n é o resultado de inúmeros cruzamentos e é considerada 96,9% Vitis vinífera quando comparada com a uva Grenache Noir (100% Vitis vinífera) que lhe deu origem. Segundo Jérôme Villaret, membro do Conselho Interprofissional de Vinhos do Languedoc, a diferença entre os vinhos obtidos das duas é imperceptível. Ele diz que especialistas não encontraram diferenças entre o vinho da uva 3180-16-8-n e diferentes vinhos de Grenache servidos a eles. No entanto, a diferença foi notória nos vinhedos na colheita de 2018: enquanto o míldio causou uma devastação considerável nos vinhedos de Vitis vinífera do sul da França, as parcelas com as uvas resistentes mantiveram-se saudáveis.
O campo experimental Pech-Rouge contém uma dúzia de variedades de uvas selecionadas por Bouquet. As mais promissoras vêm de Grenache, Fer Servadou, Ugni Blanc e Marselan. Após décadas de pesquisa, cerca de 20 viticultores do Languedoc concordaram em testar essas plantas em seus vinhedos.
Jean-Fred Coste, que faz parte do grupo, diz que plantou um hectare de videiras resistentes em sua propriedade, perto de Nîmes, pois, embora ainda não use agrotóxicos nos seus vinhedos de Vitis vinifera, em breve não conseguirá manter agricultura orgânica.
O enólogo presidente da Adega Cooperativa de Héraclès diz que há enorme pressão social sobre o uso de produtos químicos na França e, quando as pessoas veem um trator no campo, não conseguem diferenciar o tratamento orgânico do convencional, o que é problemático. Ele está pensando em criar uma cuvée (mistura) especial com vinhos dos produtores que utilizam uvas resistentes na região para divulgar essas variedades.
Resta um problema: o nome das uvas. Jérôme Villaret explica que não podem comercializar vinhos identificados por números, já que eles não significam nada para os consumidores. As autoridades francesas pedem que não seja utilizado o nome das castas das quais elas provêm (Ex: Grenache-X) de modo evitar confusão com as castas originais. Espera-se encontrar uma solução dentro de dois ou três anos. Enquanto isso, do outro lado dos Alpes, os viticultores italianos abreviaram o debate e já podem usar dez variedades resistentes, cujo nome às vezes permanece o mesmo da variedade de uva da qual descendem.
As variedades de uvas resistentes também podem ser uma solução para deter o aumento do teor alcoólico dos vinhos (resultante do aquecimento global), pois seus frutos são menos doces e, portanto, seus vinhos são menos alcoólicos e, como tal, satisfarão o desejo de muitos viticultores e consumidores.
No entanto, no final do seu artigo, Karyne Duplessis Piché coloca uma questão, sem dúvida, decisiva: “Resta saber se os produtores e os consumidores estão prontos para experimentar.”
O tempo dirá!
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